Começar é difícil, já reparou?! Começar a escrever um texto, num novo trabalho, um romance ou um esporte… Existem sempre muitas formas de iniciar: de um jeito introdutório, de maneira mais profunda, a partir de metáforas que buscam sentimentalismo ou partindo da realidade crua, por exemplo. Portanto, saiba que o começo dos estudos raciais é também conturbado e desafiador, especialmente esse, porque aponta para você.

Mas vamos lá, temos um trabalho para fazer juntas(os) e uma porção de “inícios” para entender no caminho.

A invenção da ideia de raça, segundo Silvio Almeida, se deu a partir do Iluminismo
O discurso iluminista foi importante para o fortalecimento das instituições na Europa por meio da defesa de que os povos poderiam determinar as suas próprias leis e não estariam mais, por conseguinte, submetidos a leis que emanavam da vontade divina e às quais só algumas pessoas teriam um acesso privilegiado, sejam sacerdotes, reis ou mesmo um misto das duas coisas.
Fonte: Érico Andrade.
, no século XVIII. Neste período o ser humano passou a ser estudado e classificado como selvagem ou civilizado com base na psicologia, na linguística, na biologia e na economia. Almeida nos explica que essa classificação, calcada em diferenças culturais e físicas, foi fundamental para sustentar o colonialismo.  colonialismo é uma prática na qual um território exerce domínio político, cultural ou religioso sobre um determinado povo. O controle é exercido por meio de uma potência ou força política militar externa que deseja explorar, manter ou expandir seu território.
Fonte: Educa Mais Brasil.
que submeteu e destruiu povos no continente Africano, na Oceania, nas Américas e na Ásia em nome de uma suposta civilização. Descomplicando: quem era “civilizado”, colonizava. O considerado “selvagem”, era colonizado. Entre aspas porque a classificação se dizia universal, mas na verdade era parcial e tirana. Porém, aqui, ainda não existia propriamente o conceito de “raça”.

Em seguida, no século XIX, o positivismo
O Positivismo é uma corrente filosófica que surgiu na França no início do século XIX. Ela defende a ideia de que o conhecimento científico seria a única forma de conhecimento verdadeiro. A partir desse saber, pode-se explicar coisas práticas como das leis da física, das relações sociais e da ética.
O discurso positivista era enunciado por médicos e cientistas que defendiam o racismo, por isso eram tomados como verdade.
Fonte: Educa Mais Brasil
levanta as ideias do racismo científico. Os positivistas afirmavam que características biológicas fenotípicas (de aparência física) e/ou socioambientais poderiam denotar a superioridade de um determinado grupo de humanos em detrimento de outros. É neste momento que a Humanidade abraça a ideia de que existiam raças humanas e que isso significava diferenças morais, psicológicas e intelectuais. Este pensamento favoreceu concepções europeias.

Durante quase todo o século XIX foram organizadas “exposições humanas” para estudiosos, da biologia e da ciência, analisarem corpos, diferenças e limitações de povos escravizados. Era quase como um zoológico de homens e mulheres.

Até aqui já se passaram 200 anos, você percebeu?

Alguns estudiosos da antropologia do século XX se encarregaram de mudar o pensamento de diferenciação natural entre as raças. Só depois de séculos acreditando neste ideal, começaram os movimentos na direção contrária da comparação entre brancos e negros. DuBois é um importante autor que falou nessa direção.

Sendo assim, podemos dizer que a raça é um elemento essencialmente político, sem qualquer sentido fora desse emaranhado de leis e trocas, moldadas para beneficiar uns e prejudicar outros.

Agora você já sabe um pouco mais sobre o surgimento do conceito de raça humana. Mas antes de definirmos racismo, e vermos como ao longo do tempo novas ideias vão se complementando ao pensamento inicial, assista o vídeo abaixo.

Ele debate a formação do sujeito perante as estruturas racistas.

O racismo surge a partir de práticas conscientes ou inconscientes, que têm a raça como fundamento principal. E fica entendido como toda manifestação que se justifique pela diferença, dominação, hierarquia, privilégios das raças.

Mas é importante diferenciar racismo, preconceito e discriminação em termos jurídicos e atuais.

O
preconceito é a externalização do pensamento racista, é a manifestação de concepções ou ideias arbitrariamente definidas para determinado grupo. Ele pode ou não resultar em discriminação, que nada mais é do que o “poder” de agir sob determinada situação que possa promover vantagem.

Veja só essa definição resumida:


Preconceito
: é uma opinião superficial em relação a determinada pessoa ou grupo, que não é baseada em uma experiência real e sim em “achismos”.

Discriminação: refere-se ao tratamento injusto ou negativo de uma pessoa ou grupo, por ela pertencer a certo grupo (como etnia, idade ou gênero). É o preconceito ou racismo em forma de ação.

No Brasil, hoje, há uma lei que trata o racismo como crime imprescritívelImprescritível: que podem ser julgados a qualquer tempo, independentemente da data em que foram cometidos. Atualmente, a Constituição prevê apenas dois casos de crimes imprescritíveis: racismo e ação de grupos armados contra a ordem constitucional e o Estado Democrático.
Fonte: Câmara dos Deputados.
e inafiançável
Inafiançável: que não admite livramento por fiança (diz-se de ilícito penal).
Fonte: Oxford Languages
Ela é conhecida como Lei Caó, foi assinada em 5 janeiro de 1989 e é de autoria de Carlos Alberto Caó, jornalista e parlamentar na época. Mas nem sempre foi assim.
As primeiras regulamentações legais definiram racismo apenas como uma contravenção penal.Contravenção é a infração penal a que a lei comina, isoladamente, pena de prisão simples ou de multa, ou ambas.
Fonte: Planalto
e até que se tornasse como é hoje, o texto da lei precisou ser alterado em 1990, 1994, 1997 e 2000. A Lei 7716/98 descreve o crime de racismo, injúria racial, e atos resultantes de discriminação ou preconceito.

Agora que você já entendeu por que é importante conhecermos a definição de raça e a interpretação histórica de racismo, pedimos que você reflita sobre isso no cenário brasileiro. Quais são as diferenças de contexto do Brasil em relação aos outros lugares do mundo?

Este estudo foca na realidade brasileira a partir de três termos: racismo individualista, racismo institucional e racismo estrutural.

O racismo pode ser individualista quando se trata de uma “irracionalidade”, segundo Silvio Almeida, de um indivíduo ou um grupo pequeno de pessoas, no ponto de vista da ética e combatido no campo jurídico.

Pode ser também institucional, quando está relacionado à atuação de instituições que favorecem desvantagens e privilégios com base na raça. Perceber que o racismo não se manifesta apenas individualmente, mas também relacionado a instituições, é um avanço para os estudos sobre raça. Assim podemos entender a dimensão do “poder” como constituinte fundamental do racismo, pois define rumos e lideranças sociais.

Nessa lógica, percebemos a existência de um racismo estrutural no qual as instituições e, consequentemente, os indivíduos reproduzem o racismo. Isso está relacionado a uma ordem social estabelecida, que não é criada pelas instituições, mas reproduzida por elas.

A escravidão foi o maior crime mundial e foi um resultado da evolução do pensamento racista. No Brasil, a escravidão aconteceu de 1550 a 1888. Nela, foram estabelecidos padrões mentais e institucionais escravocratas que envolvem a desqualificação e a construção da imagem de inferioridade intelectual e de trabalho dos negros. Existe, aqui, a ideia de que a escravidão teria sido mais branda do que em outros lugares, como se os povos brasileiros tivessem sofrido menos com este sistema, pois se adaptavam a isso de maneira espontânea. Isso originou teorias como a de Gilberto Freyre, da democracia racial, reforçando a ideia de mestiçagem A mestiçagem tanto biológica quanto cultural teria entre outras conseqüências, a destruição da identidade racial e étnica dos grupos
dominados, ou seja, o etnocídio. Por essa razão, a mestiçagem como etapa transitória do processo de branqueamento, constitui peça central da ideologia racial brasileira, embora
reconhecemos que todos os intercursos sexuais entre brancos e negros não foram sugeridos por essa ideologia.
Fonte: Kabengele Munanga
cultural.

A Mangueira, G.R. Escola de Samba do Rio de Janeiro, foi campeã dos desfiles de carnaval no ano de 2019 com um samba enredo que narra diversos momentos da história escravocrata. O primeiro deles é o título do samba: “Histórias pra ninar gente grande”. Isso porque a história real dos povos brasileiros que viviam em nossas terras não é a história contada nos livros e tampouco resumida ao “descobrimento”

Os povos indígenas foram escravizados e seus espaços foram invadidos pela cultura europeia do colonialismo. Assim como a abolição da escravidão não foi concedida pelas mãos da Princesa Isabel. Acompanhe o raciocínio:

Aracati é uma cidade do Ceará, estado pioneiro na abolição da escravatura. O jangadeiro Francisco José do Nascimento barrava a venda de negros na praia de Canoa Quebrada. Francisco ficou conhecido como Dragão do Mar e foi nomeado prático da Capitania dos Portos
Profissionais responsável por cumprir a legislação que regulam os tráfegos marítimos, realizar inspeções e vistorias navais, coordenar e controlar atividades referentes à navegação.
Fonte: Marinha do Brasil
. Sua principal ação foi fechar o Porto de Fortaleza para impedir que os africanos fossem levados a outras províncias. Este é um dos nomes mais importantes dos movimentos abolicionistas.

A versão oficial da história supervaloriza a ação branca e ilustra uma realidade que não aconteceu. No dia seguinte à assinatura do documento da abolição, os negros não estavam livres e inseridos na sociedade de maneira igualitária. Foi exatamente o oposto. A falta de um plano e de políticas públicas
Políticas públicas são ações e programas que são desenvolvidos pelo Estado para garantir e colocar em prática direitos que são previstos na Constituição Federal e em outras leis.
Fonte: Assembleia Legislativa do Sergipe.
, levou os negros à precariedade, se aglomerando em cortiços e favelas, sem acesso à educação e a trabalho digno. Muitos permaneceram sob regime análogo a escravidão por não obterem melhores oportunidades. Além disso, essa versão apaga a resistência de caboclos, tamoios
Os Tamoios representavam um agrupamento de povos indígenas, que eram identificados pelo idioma falado, o Tupi.
Fonte: Rio Notícias
e mulatos, personagens que ilustram uma liberdade conquistada e não dada.

A abolição foi um processo gradual, que levou anos e precisou de leis diferentes. Muitas foram impulsionadas por movimentos de resistência, outras por pressão abolicionista de outros países que estabeleciam tratativas comerciais.

Entendemos que “ninar gente grande” é uma escolha sincera dos compositores do samba, pois reflete uma realidade de perder o sono: reconhecer a nossa história a partir do nosso povo e não dos brancos europeus. Povos, esses, que nos colonizaram e contam versões mentirosas que corroboram com a supremacia deles mesmos.

Nosso país foi o último da América Latina a abolir a escravidão e as motivações vão da a psicologia até a economia. Por exemplo: psicologicamente, existe um sentimento de ressentimento
O ressentimento é um afeto, ou uma constelação de
afetos — composta de ira, inveja, amargura, desejos de vingança,
queixas melancólicas —, que desperta reações ambivalentes. Ninguém
quer se reconhecer como ressentido; o ressentimento é condenado
moralmente, tal qual a inveja, como uma disposição mesquinha.
Fonte: Maria Rita Kehl
que foi negado por parte dos portugueses. A classe branca dependia do conhecimento dos povos escravizados e não assumia a perda do vínculo escravocrata, da facilidade das relações sexuais entre senhores de engenho e suas escravas, do apelo moral que constituíam essas relações. Na economia, o regime escravocrata era rentável, os proprietários rurais estavam fortemente comprometidos em manter escravos por razões de estabilidade econômica, prestígio social e poder político.

Na próxima fase você terá acesso a alguns dados que refletem, séculos depois, as heranças desta cultura escravocrata e racista. Não são só consequências, mas também continuidade.

Para entender melhor sobre os tipos de racismo, recomendamos a leitura do livro “Racismo Estrutural” de Silvio Almeida.

Já para recordar a história da escravidão brasileira e visualizar as raízes do problema social atual que é o racismo, recomendamos os dois livros da série “Escravidão”, escritos por Laurentino Gomes.

Sabemos que esse processo pode ser emocionalmente
difícil, principalmente se você está passando por ele sozinha(o).

Entre no nosso grupo do Telegram! 🙂

Podemos dividir isso juntas (os), trocar ideias, tirar
dúvidas e continuar esse debate. Lembre-se, passar
por isso é necessário.

Este conteúdo teve como principais referências:

ALMEIDA, SILVIO. Racismo Estrutural. Feminismos Plurais. São Paulo: Editora Jandaíra, 2020. (Capítulo – Raça e racismo)

CURSO RACISMO E POLÍTICA – QUESTÕES CONTEMPORANEAS (KOPE).
Aula 01 – “Raça e racismo: uma perspectiva histórica”.
Professor: Júlio Cesar Vellozo.
Aula 02 – “Concepções Teóricas sobre o Racismo individualista, institucional e estrutural”.
Professor: Silvio Almeida.
Aula 05: “Crimes raciais no Brasil”.
Professor: Felipe Freitas

HALL, Stuart. Cultura e representação. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio : Apicuri, 2016. 260p.